sexta-feira, 17 de março de 2017

JUBAL


JUBAL (1956)

Na história do western os anos 50 foram particularmente interessantes, por várias razões. Antes da indicação “western” ser corrente, como designação de certo peso cultural, existiam os “filmes de cowboys”, muito populares durante a época do mudo e até meados da década de 30. Até aqui tudo era muito claro e maniqueísta, havia os bons e os maus, normalmente os brancos e os pretos na cor dos fatos e dos cavalos, mas também por vezes na cor da pele. Mas, quanto à diferenciação rácica, havia sobretudo distinção entre os brancos e os vermelhos (sem sequer haver associação política à cor, mas sim aos peles-vermelhas).
Depois o western começou a impor-se com outra importância artística e cultural, entrou-se na época dos grandes clássicos, como “Stagecoach”, de John Ford, e tantos outros. A introdução do sonoro permitiu uma maior complexidade das intrigas e começaram-se a discutir temas importantes, de um ponto de vista histórico e social. Mas em finais da década de 40 e durante todos os anos 50 o western ganhou uma nova dimensão, por vários motivos. O incremento das ideias de Freud e da psicanálise, que entraram abertamente no território norte-americano, a emancipação da mulher, depois do esforço imposto pela II Guerra Mundial, e a guerra fria, o macartismo e todas as consequências decorrentes destes fenómenos contaminaram o western com temas, ideias, figuras, situações que não eram muito populares até aí.
Para caracterizar estas posições assumidas pelos autores de westerns na década de 50 podemos socorrermo-nos das palavras de Barthémely Amengual (um dos grandes especialistas do género, in “lmage et Son”, n. 97, 1956), escritas por essa altura: “Neo-western, sur-western, anti-westem, western romanesco... a crítica não sabe como baptizar (ou definir) o western contemporâneo (ia a dizer adulto, o que seria injurioso para os antigos êxitos ...)”. Ou ainda de André Bazin (in “Cahiers du Cinéma”, n. 054, 1955): “Chamarei convencionalmente sur-western ao conjunto das formas adaptados pelo género, no pós-guerra. Mas não procurarei dissimular que a expressão vai soçobrar pela necessidade de exposição de fenómenos nem sempre comparáveis. Ela pode, no entanto, justificar-se negativamente por oposição ao classicismo dos anos 40 e, sobretudo, à tradição de que é a resultante. Digamos que o sur-western é um western que teria vergonha de ser ele mesmo e procurasse justificar a sua existência por um interesse suplementar: de ordem estética, sociológica, moral, psicológica, política, erótica..., logo, por qualquer valor extrínseco ao género e que se supõe vir enriquecê-lo.”
Estas palavras dão bem a medida do que foi o western do pós-guerra. O classicismo dos anos anteriores cede o lugar à heterodoxia, conjugando elementos de índole diversa com a tradição e a mitologia próprias do género. O que não pode deixar de ser significativo de uma nova mentalidade. O western deixou de ser considerado um terreno puro, “intoxicou-se” (no dizer de Nuno Portas, num texto relativo a “Johnny Guitar”). Recusada a pureza original, viu-se contaminado por intenções várias. “O Comboio Apitou Três Vezes” (1953), de Fred Zinnemann, é um bom exemplo deste período fértil em obras de corajosa denúncia racial, política (reacção ao macarthismo, nomeadamente), social e moral. No entanto, uma das obras mais frisante desta época de transição é indubitavelmente “Shane” (1953), de George Sleven. As interferências externas prolongam-se, entrando por campos até aí pouco explorados. Surgem os primeiros casos de erotismo na história do filme do Oeste em certa medida como consequência da inflação da “pin up” durante a guerra. Uma progressão irreversível que vai do próprio “A Terra dos Homens Perdidos”, de Howard Hughes e Hawks ao “Rio sem Regresso” (1954), de Otto Preminger, passando pelo paroxismo de um “Duelo ao Sol”, de Vídor,
Convém, no entanto, fazer notar dentro desta mesma tendência moderna do western duas vias possíveis de desenvolvimento: uma que vai ao encontro de toda a mitologia do género e que a enriquece de dentro (com cineastas como Howard Hawks, Nicholas Ray, Anthonny Mann, Raoul Walsh ... ) e uma outra, onde essa intoxicação se processa do exterior, ou seja, como imposição prévia (neste caso estão autores como Fred Zinnemann, John Sturges, Robert Aldrich, Richard Brooks, Delmer Daves, entre outros). Enquanto um western de Anthony Mann não seria pensável senão sob a forma western, o mesmo não sucederia em relação a “O Comboio Apitou Três Vezes”, “Lança Quebrada” ou “Vera Cruz”. Os problemas centrais deste neo-western ultrapassam o género e situam-se a um nível de debate de ideias e conceitos que se poderiam igualmente equacionar num policial ou “filme negro”, numa comédia ou num austero filme de tese.
De qualquer forma, e quer a aludida intoxicação se processe de dentro para fora ou inversamente, o que está em causa é a consciencialização dos cineastas norte-americanos que, passada que foi (com mágoa) a época liberal do “New-Deal”, se encontraram a braços com uma América inesperadamente em crise, crise que não é só económica, mas igualmente social, moral, politica, psicológica, afectada profundamente pela desilusão do pós-guerra e pela realidade da guerra fria. Afinal, uma nova crise em que valores antigos deixam de se ajustar a realidades presentes. Desse desajuste nasce esse novo western, moderno em relação aos valores clássicos, que pode ser testemunhado, entre muitos outros, em títulos como “Johnny Guitar” (Ray, 1953), “Esporas de Aço” (Mann, 1952), “O Homem Que Veio de Longe” (Mann, 1954), “Céu Aberto” (Hawks, 1951), “A Lança Quebrada” (Dmytryck, 1954), “Homem sem Rumo” (Vidor, 1954), “A Última Caçada” (Brooks, 1955) ou “Jubal” ou “O Comboio das 3 e 10” (Daves, 1956 e 1957). 

Entramos, portanto, no caso muito especifico de “Jubal” que se apoia, nada mais nada menos, do que numa peça teatral de Shakespeare, ou mesmo nas óperas de Gioachino Rossini ou Giuseppe Verdi, para não falar de tantas outras formas de arte que se inspiraram na tragédia do famoso general árabe de Veneza. A história é sabida de todos, tão popular é: Othello, casado com Desdémona, tem em Cassio, um fiel ajudante, e em Iago, um rival intriguista e desleal. Vingando a promoção de Cassio, que considera injusta, inventa uma traição deste, acusando-o de amores adúlteros com Desdémona, o que irá provocar uma terrível tragédia. Um tema eterno que coloca em causa temas como o ciúme, o amor, a traição, a vingança e, no caso de Shakespeare, o racismo.
O filme de Delmar Daves anula o caso do racismo, pois todos os protagonistas são brancos, mas mantem tudo o resto em equação, partindo de um romance de Paul Wellman, o próprio Daves e Russell S. Hughes adaptaram. Em lugar do tema racismo, Daves acerca-se de um conflito que já fizera parte central de “Shane”: a luta entre os grandes barões do gado e os pequenos proprietários ou criadores de porcos ou ovelhas. Tudo se passa em Jackson Hole, em Wyoming, onde Jubal Troop (Glenn Ford) aparece, vindo não se sabe de onde, mas cai nas graças de Shep Horgan (Ernest Borgnine), um fazendeiro bem-humorado e generoso, que lhe oferece trabalho e hospitalidade. Quem não se mostra tão afectuoso é Pinky (Rod Steiger), que gostaa de ser o preferido de Shep e vê a sua posição vacilar perante a chegada de Jubal. Tanto mais que Mae ((Valerie French)), a jovem mulher de Shep, parece igualmente preferir Jubal a Pinki, na sua necessidade evidente de afecto e algo mais. O resto é “Othello” adaptado ás pradarias do Oeste, com inteligência, critério e um excelente esboço social e humano a suportar a intriga.


Delmer Daves (1904–1977) é um cineasta particularmente interessante, nem sempre devidamente avaliado. Repartiu grande parte das suas obras entre o western e o melodrama, e nos dois campos, assinou obras de referência. Depois de um início de carreira onde tocou um pouco em todas as teclas dos géneros (“Rumo a Tóquio”, 1943;  “Sonho em Hollywood”, 1944; “Uma Luz nas Trevas”, 1945; “A Casa Vermelha”, 1947; e esse magnifico “O Prisioneiro do Passado”, 1947, com Humphrey Bogart), Delmer Daves passou a dividir,quase exclusivamente, a sua filmografia por westerns líricos, vibrantes, sensuais e românticos (“A Flecha Quebrada”, 1950;  “A Última Caravana” e “Jubal”, 1956; “O Comboio das 3 e 10”, 1957; “Cowboy - Como Nasce Um Bravo” e “Os Homens das Terras Bravas”, 1958; ou “Raízes de Ouro”, 1959) e melodramas se exasperado sentimentalismo, mas sempre dirigidos com rigor e contensão, numa linha que se aproxima muito do mestre deste género, Douglas Sirk (“Carne da Minha Carne” e “Bonecas de Carne”, 1961; “Escândalo ao Sol”, 1959; “Viver é o que Importa”, 1962, “Febre de Viver”, 1964; ou “Escândalo em Villa Fiorita”, 1975).
Jubal é um filme que demonstra muitas das qualidades do cinema apaixonado e vigoroso de Delmer Daves, um homem que gosta de explorar os grandes espaços naturais, mas igualmente mestre no aproveitamento de interiores, onde se encerram muitos dos seus conflitos. Cenários de cores quentes, onde as paixões explodem ou se controlam e as emoções se atiçam são a base para excelentes actores se exercitarem, por vezes com métodos e formas de representar diversos, o que torna ainda mais aliciante o seu confronto.  Glenn Ford, Ernest Borgnine, Rod Steiger, Valerie French, Charles Bronson, Jack Elam, Felicia Farr, Noah Beery, Jr., ou Basil Ruysdael são magnificos nas suas composições, assim como são de ressalvar a bela fotografia de Charles Lawton Jr. e a partitura musical de David Raksin.


JUBAL
Título original: Jubal
Realização: Delmer Daves (EUA, 1956); Argumento: Russell S. Hughes, Delmer Daves, segundo romance de Paul Wellman; Produção: William Fadiman; Música: David Raksin; Fotografia (cor): Charles Lawton Jr.; Montagem: Al Clark; Direcção artística: Carl Anderson; Decoração: Louis Diage; Guarda-roupa: Jean Louis;  Maquilhagem: Clay Campbell, Helen Hunt; Assistentes de realização: Eddie Saeta; Som: John P. Livadary, Harry Smith; Companhias de produção: Columbia Pictures Corporation; Intérpretes: Glenn Ford (Jubal Troop), Ernest Borgnine (Shep Horgan), Rod Steiger ('Pinky' Pinkum), Valerie French (Mae Horgan), Felicia Farr (Naomi Hoktor), Basil Ruysdael (Shem Hoktor), Noah Beery Jr. (Sam - Horgan Rider), Charles Bronson (Reb Haislipp), John Dierkes (Carson), Jack Elam (McCoy), Robert Burton (Dr. Grant), John L. Cason, Michael Daves, Juney Ellis, Don C. Harvey, Robert 'Buzz' Henry, Larry Hudson, Robert Knapp, Ann Kunde, William Rhinehart, etc. Duração: 100 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: Cinema Império, 23 de Junho de 1957.


GLENN FORD (1916-2006)
Glenn Ford, de nome de baptismo Gwyllyn Samuel Newton Ford, nasceu a 1 de Maio de 1916, no Quebeque, Canadá, e faleceu a 30 de Agosto de 2006, com 90 anos, em Beverly Hills, Califórnia, EUA. Filho de um executivo ferroviário, com oito anos de idade muda-se para Santa Mónica, na Califórnia, e torna-se cidadão americano em 1939. Estudou na High School de Santa Mónica, e estreia-se como actor aos 19 anos. Integra várias companhias, até chegar à Broadway. Contratado pela 20th Century Fox, passa para a Columbia, onde roda cerca de 50 filmes em 18 anos, sobretudo western de pequeno orçamento e de realizadores medianos. Passa pelos US Marines Corps, durante a II Guerra Mundial e, de regresso, integra-se no elenco da Columbia, onde assegura um lugar destacado. A partir de “Gilda” a sua áurea aumenta e durante alguns anos tentam reeditar o êxito da dupla Hayworth-Ford, sem nunca atingir a intensidade do original. Mas interpretou muitos e bons papéis, dirigido por grandes cineastas, como Fritz Lang, Richard Brooks, Vincente Minnelli, e manteve uma clientela fiel, tanto no cinema, como posteriormente na televisão. Envelheceu mal, dado ao álcool e a irascibilidade. Ao receber um prémio, concedido por uma revista da especialidade, protagonizou um episódio infeliz: recusou-se sentar ao lado de um outro actor, negro. Casado com Eleanor Powell (1943-1959), Kathryn Hays (1966-1969), Cynthia Hayward (1974-1977) e Jeanne Baus (1993-1994). Teve ainda conhecidas ligações com Zsa Zsa Gabor, Hope Lange, Rita Hayworth, Connie Stevens, Joan Crawford, Dinah Shore, Brigitte Bardot, Debbie Reynolds, María Schell, Linda Christian, Judy Garland, entre outras, que não acabaram em casamento. Glenn Ford sofreu de problemas cardíacos durante a fase final da sua vida. Ganhou um Globo de Ouro, em 1962, pelo seu desempenho em “Pocketful of Miracles”. Tem uma estrela no “Passeio da Fama”, em 6933 Hollywood Blvd.

Filmografía (principais filmes): 1939: My Son Is Guilty (O Filho de um Gangster), de Charles Barton; 1940: The Lady in Question (Acusada, Levante-se!), de Charles Vidor; 1941: So Ends Our Night (Regresso a Berlim), de John Cromwell; 1941: Texas (Texas), de George Marshall; 1943: The Desperadoes (Bandidos), de Charles Vidor; 1943: A Stolen Life (Uma Vida Roubada), de Curtis Bernhardt; 1946: Gilda (Gilda), de Charles Vidor; 1948: The Loves of Carmen (Amores de Carmen), de Charles Vidor; 1948: The Man From Colorado (Pena de Talião), de Henry Levin; 1949: Lust for Gold (Oiro Maldito), de S. S. Simon; 1952: Affair in Trinidad (Calypso, a Feiticeira da Ilha), de Vincent Sherman; 1953: The Man from Alamo (Invasores), de Budd Boetticher; 1953: The Big Heat (Corrupção), de Fritz Lang; 1953: Appointment in Honduras (Encontro nas Honduras), de Jacques Tourneur; 1954: Human Desire (Desejo Humano), de Fritz Lang; 1955: The Americano (O Americano), de William Castle; 1955: The Violent Men (Homens Violentos), de Rudolph Maté; 1955: The Blackboard Jungle (Sementes de Violência), de Richard Brooks; 1955: Interrupted Melody (Melodia Interrompida), de Curtis Bernhardt; 1955: Trial (A Fúria dos Justos), de Mark Robson; 1956: Jubal (Jubal), de Delmer Daves; 1956: The Teahouse of the August Moon (A Casa de Chá do Luar de Agosto), de Delbert Mann; 1957: 3:10 to Yuma (O Comboio das 3 e 10), de Delmer Daves; 1958: Cowboy (Cowboy, Como Nasce um Bravo), de Delmer Daves; 1958: The Sheepman (O Irresistível Forasteiro), de George Marshall; 1960: Cimarrón (Cimarron), de Anthony Mann; 1961: Pocketful of Miracles (Milagre por um Dia), de Frank Capra; 1962: The Four Horsemen of the Apocalypse (Os Quatro Cavaleiros do Apocalipso), de Vincente Minnelli; 1962: Experiment in Terror (Uma Voz na Escuridão), de Blake Edwards; 1963: The Courtship of Eddie's Father (As Noivas do Papá), de Vincente Minnelli; 1964: Dear Heart (Uma Vida por Viver), de Delbert Mann; 1966: The Money Trap (A Tentação do Dinheiro), de Burt Kennedy; 1966: Paris Brûle-t-il? (Paris Já Está a Arder?), de René Clément; 1968: Day of the Evil Gun (A Pistola do Mal), de Jerry Thorpe; 1969: Heaven with a Gun (À Mão Armada), de Lee H. Katzin; 1976: Midway (Batalha de Midway), de Jack Smight; 1978: Superman (Super-Homem), de Richard Donner; 1991: Raw Nerve, de David A. Prior; 1991 (último trabalho): Final Verdict (TV).


A LESTE DO PARAISO


A LESTE DO PARAÍSO (1995)

A família e a figura tutelar do pai são dois dos temas mais recorrentes na filmografia (e em toda a obra, escrita e teatral também) de Elia Kazan. “A Leste do Paraíso”, conjuntamente com “Esplendor na Relva”, “América, América” ou “O Compromisso”, é um dos filmes mais sinceros e sentidos como retrato da célula familiar e sobretudo das relações de amor e raiva que se podem estabelecer entre filhos e pais. O próprio Elia Kazan confessa que as suas relações com o seu pai foram conflituosas: o pai era um grego tradicionalista e autoritário, Kazan um jovem rebelde que sonhava com a liberdade, mas que procurava conciliar o amor ao pai com essa necessidade de revolta e de imposição de uma vontade própria.
Segundo um romance de John Steinbeck, “A Leste do Paraíso” é um dos títulos que mais contribuíram para a glória de James Dean e para a consolidação do mito do rebelde. Elia Kazan esmera-se na direcção de actores, utilizando todo o arsenal de elementos fornecidos pelo Actor's Studio, tendo em James Dean uma massa fácil de moldar. O realizador afirma inclusive que ao actor bastou ser ele mesmo, com os seus traumas e obsessões para conseguir um trabalho notável e impor uma personagem inesquecível, na fragilidade e ambiguidade do seu comportamento. A forma como Dean utiliza subtilmente o corpo para sublinhar emoções e estados de espírito, é impressionante. O princípio de que a câmara de filmar deve penetrar no interior dos actores através dos olhos para revelar o seu íntimo mais secreto é aqui exemplarmente confirmado. Os olhos magoados e furtivos de Dean são uma doce fogueira de sentimentos contraditórios, que vão do amor mais intenso à piedade mais sofrida, passando pela raiva e a violência.
“East of End” decorre em Salinas Valley, no estado da Califórnia, no ano de1917, e fala-nos essencialmente da vida de uma família de agricultores, centrando-a, no fundamental, em Cal (James Dean), um dos filhos de Adam Trask (Raymond Massey). O outro é Aron (Richard Davalos), a quem o pai dedica mais atenção e com quem mantém uma relação muito mais próxima. A relação entre Cal e Aron remete para uma outra, muito mais antiga e mitificada pelos tempos: “Caim matou Abel e foi viver para Leste: a leste do Paraíso”.
Será numa evidente toada de alusões bíblicas que Kazan desenvolve a sua obra, atenta aos contornos psicológicos das personagens e ao seu devido enquadramento social e histórico. Estamos em 1917, a América prepara-se para entrar na I Guerra Mundial, o clima é de instabilidade e insegurança. Quando Adam Trash perde toda a sua riqueza num negócio de congelamento de vegetais, Cal procura remediar o mal, criando feijões, cujo preço sobe em flecha depois dos EUA entrarem no conflito. Mas Adam é um puritano empedernido, rege-se por uma conduta moral obsoleta, não compreende os motivos dos outros, sobretudo de Cal, que ele identifica com o Mal e o Pecado, herdados da mãe desaparecida. Cal é o protótipo do protagonista de actos falhados: cada nova tentativa de aproximação do pai é um fracasso, cada gesto de amor e devoção, uma tragédia, o que o leva a gritar: “Não quero mais amor de espécie nenhuma, o amor não dá futuro.”


Vivendo com o pai e o irmão, julgando a mãe morta, Cal descobre, no entanto, que ela vive ainda, surpreendendo-a à frente de um bordel em Monterey. Esta descoberta é uma revelação e igualmente uma confirmação: ele é a personificação do Mal, tal como o fora a mãe, Kate (Jo Van Fleet), que rompera o casamento na procura da liberdade pessoal, sentindo-se asfixiar pelo rigor puritano do marido e a vida isolada do campo. Para fugir de casa tivera mesmo que alvejar o marido. Hoje vive abastadamente na melhor “casa” de Monterey, adormecida em álcool e recusando de início ver os filhos. Mas o seu olhar magoado recorda dores antigas, o que não a impede de orgulhosamente afirmar que “entra na sua “casa” pela porta da frente, enquanto os seus influentes clientes o fazem “clandestinamente pela porta das traseiras”.
Para o melodrama ser ainda mais intenso e o clima emocional de cortar à faca, Aron namora com Abra (Julie Harris), mas desde o início se pressente que esta ama e deseja Cal, não assumindo esse amor por medo. Cal representa a liberdade, Aron o conformismo, Abra verga-se à vontade deste último por comodismo, mas anseia por uma gesto de Cal. Que acontece, durante uma noite numa feira, no alto de uma Roda que precipita o destino. O ciúme adormecido e a rivalidade mantida em segredo explodem. Caim e Abel em luta. Cal obriga o irmão a confrontar-se com a mãe, acabando este por fugir do Paraíso e ir oferecer-se como voluntário para a guerra, rompendo com a namorada, que é a única pessoa capaz de compreender e aceitar Cal conforme este é. “É tremendo não ser amado. Torna as pessoas mesquinhas, horríveis, más.”
Um filme dramático e vigoroso, excelentemente dirigido e interpretado por um grande conjunto de actores, encabeçados por James Dean, mas onde é ainda de justiça referir Jo Van Fleet, Raymond Massey, Julie Harris e Burl Ives (Sam, o Sheriff). Excelente partitura musical de Leonard Rosenman.


A LESTE DO PARAISO
Título original: East of Eden
Realização: Elia Kazan (EUA, 1955); Argumento: Paul Osborn, John Steinbeck, segundo romance deste último; Produção: Elia Kazan; Música: Leonard Rosenman; Fotografia (cor): Ted D. McCord; Montagem: Owen Marks; Direcção artística: James Basevi, Malcolm C. Bert; Decoração: George James Hopkins; Guarda- roupa: Anna Hill Johnstone; Maquilhagem: Gordon Bau; Asistentes de realização: Don Alvarado, Horace Hough; Som: Stanley Jones; Companhia de produção: Warner Bros.; Intérpretes: James Dean (Cal Trask), Julie Harris (Abra), Raymond Massey (Adam Trask), Burl Ives (Sam, o Sheriff), Richard Davalos (Aron Trask), Jo Van Fleet (Kate), Albert Dekker (Will Hamilton), Lois Smith (Anne), Harold Gordon (Gustav Albrecht), Nick Dennis (Rantani), Abdullah Abbas, Rose Allen, José Arias, Barbara Baxley, Joe Brooks, Timothy Carey, Jack Carr, Wheaton Chambers, Lonny Chapman, Edward Clark, Harry Cording, Roger Creed, Ray Dawe, Anna Dewey, Lester Dorr, Darren Dublin, Franklyn Farnum, Al Ferguson, Cliff Fields, Richard Garrick, John George, Leonard George, John Halloran, Jonathan Haze, Ramsay Hill, Earle Hodgins, Charles Anthony Hughes, Carolyn Jones, Effie Laird, Frank Mazzola, Edward McNally, Ken Miller, Tex Mooney, Paul Nichols, William 'Bill' Phillips, Rose Plummer, Pat Priest, Julian Rivero, Mickey Roth, Loretta Rush, Mario Siletti, Hal Taggart, Bette Treadville, Max Wagner, Lillian West, Chalky Williams, etc. Duração: 115 minutos; Distribuição em Portugal: Sif; VHS: Warner Bros.; Classificação etária: M/12 anos; Estreia em Portugal: 12 de Maio de 1956.


JAMES DEAN (1931-1955)

James Byron Dean nasceu a 8 de Fevereiro de 1931, em Marion, Indiana, EUA, e faleceu a 30 de Setembro de 1955, em Cholame, Califórnia, EUA, vítima de acidente de viação. Depois de passar grande parte da sua juventude numa quinta dos tios, em Fairmount, Indiana, viajou até Nova Iorque com o sonho de vir a ser actor. Depois de alguns trabalhos sem grande significado, e de uma nomeação de melhor “revelação” em "The Immoralist”, na Broadway, mudou-se para Hollywood, onde de início não teve igualmente muita sorte, pois só conseguiu papéis sem qualquer relevo, em filmes como a obra de Samuel Fuller, “Baionetas Caladas” (1951), onde era um soldado na Guerra da Coreia; a comédia de Dean Martin e Jerry Lewis, “Marujo, o Conquistador” (1952); ou uma aparição irrelevante numa outra comédia com Piper Laurie e Rock Hudson, “Viram a Minha Noiva?” (1952). Mas rapidamente passou a protagonista de três filmes que lhe conferiram o lugar de imortal e de ícone na galeria das mais lendárias estrelas de Hollywood. Na adaptação da obra de John Steinbeck, realizada por Elia Kazan, “A Leste do Paraíso” (1955), na personagem de Jim Stark o rebelde sem causa do mítico filme de Nicholas Ray, “Fúria de Viver” (1955), e finalmente na adaptação de um romance de Edna Ferber, O Gigante (1956), com a assinatura de outro mestre, George Stevens. No dia 30 de Setembro de 1955, ao volante de um Porsche Spyder, colidiu com outro carro numa estrada perto de Cholame, na Califórnia, e teve morte quase instantânea. Duas horas antes tinha sido multado por excesso de velocidade. Tinha 24 anos, milhões de admiradores, e esta trágica ocorrência, acrescida do seu talento e carisma, transformaram-no num mito insubstituível. O funeral foi uma manifestação de pesar sem paralelo. Sepultado no Park Cemetery, Fairmount, Indiana, EUA. Recebeu duas nomeações (póstumas – até hoje únicas!) para Oscar de Melhor Actor, em “A Leste do Paraíso” e “O Gigante”. A sua vida privada foi vasculhada ao pormenor, contando-se várias ligações, umas com actrizes como Pier Angeli (que antes de se suicidar confessou que James Dean tinha sido o seu verdadeiro amor) ou Liz Sheridan, outras com elementos masculinos, sublinhando a sua tendência homossexual. William Bast, seu companheiro, escreveu um livro sobre a sua relação com Dean, "Surviving James Dean". Era um admirador confesso de Marlon Brando, que o acusava de lhe copiar comportamento, etilo de vida, gestos, etc., e uma das suas aspirações era ser escritor (tal como Brando). A sua interpretação de Jim Stark, em “Fúria de Viver” (1955), foi considerada a 43ª melhor de toda a história do cinema, no inquérito da “Première Magazine”, “100 Greatest Performances of All Time” (2006). Antes de falecer, assinara um contrato com a Warner Bros., no valor de 900,000 dólares, contra a participação em nove filmes, entre os quais se alinhavam "The Corn is Green", “Marcado Pelo Ódio” (1956), “Vício de Matar” (1958), “Gun for a Coward” (1957), “This Angry Age” (1958) e “Gata em Telhado de Zinco Quente” (1958). Paul Newman substituiu-o por três vezes. 

SHANE


SHANE (1953)

Shane é o nome. Veio de longe e parte para longe. Não se sabe de onde veio. Não se sabe para onde irá. É uma daquelas personagens míticas de que se fazem muitas obras de arte, seja no cinema ou não. É obviamente o protagonista de um western, território de mitos por excelência.  É um herói de que se desconhece o passado, mas que se pode supor. É um herói que vamos encontrar no Oeste bravio norte-americano, numa terra em profundas transformações. Num vale do Wyoming existe um grande latifundiário, criador de gado, para quem toda a terra é sua e na qual apascentam as suas rezes. Existem pequenos agricultores que se instalam, delimitam território e querem fazer ali a sua casa.
O filme parte de um romance de Jack Schaefer, não será baseado estritamente em factos concretos, mas assenta realmente em acontecimentos históricos. Aquando da “conquista do Oeste”, na segunda metade do século XIX, o governo dos EUA criou o “Homestead Acts”, uma lei que permitia a americanos e emigrantes, maiores de 18 anos, que nunca “tivessem levantado armas conta os EUA”, instalarem-se em determinadas terras públicas e aí criarem raízes.
Acontece que, anteriormente, outros exploradores se teriam instalado já nessas terras, onde os seus gados corriam livremente, e pretendiam que esse facto fosse bastante para as considerarem suas. Diz a História que mais de 270 milhões de acres de terra pública foram distribuídos por cerca de 1.6 milhões de “homesteaders”, precisamente esses “proprietários rurais”. Os barões da terra não gostaram de ver invadidas as (consideradas) suas propriedades e rapidamente os conflitos brotaram com violência tal que a este período, em redor de 1892, se deu o nome de “Johnson County War”.
Existia igualmente um preconceito que considerava menor a criação de outro gado que não fossem vacas e cavalos. Por isso esses novos agricultores eram insultados e chamados de "pig farmers," "sod busters," "squatters" (criadores de porcos, destruidores de terras, invasores) e outros epítetos ainda menos gentis. “Shane” aborda precisamente esta época e este conflito, partindo de um caso concreto, uma família, um terreno, uma casa, local por onde passa Shane, vindo do horizonte, tendo as montanhas Grand Teton como pano de fundo. Aliás as filmagens ocorreram no Jackson Hole, no Wyoming, nas referidas montanhas e ainda no Big Bear Lake, na Floresta Nacional de San Bernardino, no Rancho Iverson e em Chatsworth. Tudo quanto foi rodado em estúdio aconteceu nos estúdios da Paramount em Hollywood, na Califórnia.


Os historiadores contam que o realizador e produtor George Stevens pretendia inicialmente Montgomery Clift para o papel de Shane e William Holden para o de Joe Starrett. Ambos recusaram e acabariam os mesmos por ser confiados a Alan Ladd e Van Heflin, indicados pela Paramount. Para interpretar o papel de Marian também tinha sido pensada inicialmente Katharine Hepburn, mas Jean Arthur acabaria por ser a escolhida, ela que fora uma actriz muito conceituada nas décadas de 30 e 40, mas que há cinco anos não interpretava um filme. “Shane” seria mesmo o seu último trabalho no cinema.
Voltemos ao desconhecido que vem lá do fundo do horizonte e para quem o pequeno Joey chama a atenção do pai. “Deixa-o vir”, responde Starret. Esta cena inicial confere desde logo um tom muito especial ao filme. Com poucas palavras percebe-se da solidão em que se vive, da vigilância quanto a quem vem lá, interroga-se a paisagem, firmam-se os laços familiares, descobre-se a aspereza do dia a dia… Mais tarde, entraremos em contacto com mãe da família, que se descobre através de uma janela, espreitando, e aí também se começará a notar a importância dramática de portas e janelas neste universo de fazendeiros que vivem assediados por latifundiários que vivem ainda numa idade onde a força das armas impõe a justiça. Onde era a justiça. E quando as armas locais não chegavam, ou não se queria sujar as mãos, mandava-se vir de longe um pistoleiro afamado, como Jack Wilson (uma magnífica composição de Jack Palance, a relembrar um pouco um dos irmãos Dalton, mas em sério).


Shane parece conhecer bem Jack Wilson (o reconhecimento é comum), pelo que se pode supor que ambos já se tinham cruzado anteriormente (ou se cruzara a lenda dos dois). Shane dir-se-ia que vinha em busca de paz e do aconchego de uma família de acolhimento, tanto mais que Marian Starret se mostra igualmente hospitaleira e o jovem Joey adopta o desconhecido. Mas a paz é sol de pouca duração, Ryker arregimenta as suas tropas contra os intrusos, e seja o que Deus quiser… Ou o que Shane achar por bem.
Os westerns são terra para muitos conflitos e descrevem o nascimento de uma nação como poucos outros filmes. “Shane” é um clássico, com todos os condimentos para ser eterno: uma bela história, cheia de prolongamentos sociológicos, históricos, humanos, com cenários esplendorosos, uma fotografia admirável, a que as versões blu ray restituem toda a grandeza, uma belíssima banda sonora, com temas que ficaram célebres, da inspiração de Victor Young, e actores magníficos, Alan Ladd, obviamente, inesquecível nesta figura, Jean Arthu, Van Heflin, o pequeno Brandon De Wilde, Jack Palance ou Emile Meyer. “Shane” figura em todas as listas dos melhores westerns de sempre, mas aparecia igualmente em 69º lugar na lista de 1997 dos 100 melhores da AFI, tendo subido para a 45º posição, na revisão de 2007.  George Stevens continua um mestre. Iniciou-se como realizador no início da década de 30, passou pelo musical, “Ritmo Louco”, com Astaire e Rogers, experimentou um pouco de cada género, mas nos anos 40 e 50 foi um dos reis de Hollywood, com obras como “O Assunto do Dia”, “O Seu Grande Mistério”, “Um Lugar ao Sol”, “Renúncia”, “Shane”, “O Gigante” ou “O Diário de Anne Frank”. Um dos últimos filmes foi “A Maior História de Todos os Tempos”. Morreu em 1975.
“Shane” mereceu indicação para vários Oscar, desde o de Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento (A.B. Guthrie Jr.), e ainda uma dupla nomeação para Melhor Actor Secundário (Brandon De Wilde e Jack Palance), Venceu o Oscar de Melhor Fotografia para o director Loyal Griggs. Foram variadíssimos os outros prémios e galardões. Clint Eastwood dirigiu uma espécie de remake de “Shane”, chamado “Pale Rider” (Justiceiro Solitário). 


SHANE
Título original: Shane
Realização: George Stevens (EUA, 1953); Argumento: A.B. Guthrie Jr., Jack Sher, segundo romance de Jack Schaefer; Produção: Ivan Moffat,  George Stevens; Música: Victor Young; Fotografia (cor): Loyal Griggs;  Montagem: William Hornbeck, Tom McAdoo;  Direcção artística: Hal Pereira, Walter H. Tyler; Decoração: Emile Kuri;  Guarda-roupa: Edith Head;  Maquilhagem: Wally Westmore; Assistentes de realização: John R. Coonan; Som: Gene Garvin, Harry Lindgren; Efeitos visuais: Farciot Edouart, Gordon Jennings; Companhia de produção: A Paramount Picture; Intérpretes: Alan Ladd (Shane), Jean Arthur (Marian Starrett), Van Heflin (Joe Starrett), Brandon De  (Joey Starrett), Jack Palance (Jack Wilson), Ben Johnson (Chris Calloway), Edgar Buchanan (Fred Lewis), Emile Meyer (Rufus Ryker), Elisha Cook Jr. (Stonewall Torrey), Douglas  (Axel 'Swede' Shipstead), John Dierkes (Morgan Ryker), Ellen Corby (Mrs. Liz Torrey), Paul McVey (Sam Grafton), John  (Will Atkey), Edith Evanson, Leonard Strong, Ray Spiker, Janice Carroll, Martin Mason, Helen Brown, Nancy Kulp, Ewing Miles Brown, Bill Cartledge, William Dyer Jr., Chick Hannan, Alana Ladd, David Ladd, George J. Lewis, Rex Moore, Howard Negley, Charles Quirk, Steve Raines, William Simonds, Kathy Stainbrook, Jack Sterling, George Stevens (voz),  Jo Ann Thompson, Beverly Washburn, Henry Wills, David Wyatt, etc. Duração: 118 minutos; Distribuição em Portugal (Blu-ray): Pramount, Madrid; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 1 de Janeiro de 1954.


ALAN LADD (1913 – 1964)

Alan Walbridge Ladd, mais conhecido só por Alan Ladd, nasceu a 3 de Setembro de 1913, em Hot Springs, Arkansas, EUA, e viria a falecer a 29 de janeiro de 1964, com 50 anos, em Palm Springs, Califórnia, EUA. Depois da morte do pai, a mãe mudou-se para Oklahoma City, e depois para North Hollywood, Califórnia. Trabalhou como carpinteiro (com o padrasto) para os estúdios e estudou na escola de actores da Universal Pictures. Como era loiro e baixo, a Universal não o cotratou. Mas a sua voz deu-lhe uma carreira na rádio, aparecendo depois nalguns pequenos papéis de figurante (aparece em “Citizen Kane”, por exemplo). Entretanto, casara com Midge Harrold e tivera um filho, Alan Ladd, Jr., o padrasto morrera e a mãe, vítima de depressão, cometera suicídio. Em 1942, Alan Ladd casa pela segunda vez, agora com a sua agente, a actriz Sue Carol. Foi nesse momento que Carol lhe conseguiu um grande papel, em “This Gun for Hire” (1942), onde trabalhava ao lado de Veronica Lake, uma atriz baixinha como ele (1,57m) e que seria seu par em várias obras. Rapidamente se tornou um actor célebre e um dos mais populares da Paramount Pictures. Interrompeu a carreira para o serviço militar na Força Aérea, mas a popularidade não desceu. “The Blue Dahlia", segundo um romance de Raymond Chandler, é outro sucesso. Em 1953, Ladd interpretaria um dos mais famosos papéis do cinema, o do pistoleiro, em “Shane”. Depois deste auge, a sua carreira declinou, com problemas de alcoolismo e de saúde. Em 1963, iria surgir, já como actor secundário, em “The Carpetbaggers”, seu derradeiro filme. Alan Ladd morreu em Palm Springs, Califórnia, em 1964, vítima de uma overdose de álcool e calmantes, com 50 anos. Foi enterrado em Forest Lawn Memorial Park, Glendale, Califórnia. Deixou uma grande herança e uma família de pessoas ligadas ao cinema: o filho, Alan Ladd, Jr., é um executivo de cinema e fundou a The Ladd Company; a filha Alana é casada com Michael Jackson, um veterano nome da rádio. Outro filho, David Ladd, é actor e ainda chegou a contracenar com o pai, em “The Proud Rebel”. É casado com a actriz Cheryl Ladd. A actriz Jordan Ladd é neta de Alan Ladd.

A RAÍNHA AFRICANA


A RAÍNHA AFRICANA (1951)

Um homem e uma mulher descem um rio, em África, a bordo de uma barcaça de madeira corroída e remendada, carregada com explosivos. Tudo se passa durante a II Guerra Mundial. Estamos em Setembro de 1941, numa pequena aldeia da África equatorial, quando esta é atacada por tropas alemãs. Assistimos antes à vida quotidiana de uma missão religiosa, dirigida pelo padre Samuel Sawyer (Robert Morley), ajudado pela sua irmã, Rose (Katharine Hepburn). São ingleses, percebe-se desde logo pela forma como se comportam, incitando aos cânticos piedosos, enquanto a sua assembleia nativa está muito mais preocupada com outros temas mais terrestes. Nesse ambiente vem atracar o “African Queen”, comandado pelo seu único tripulante, Charlie Allnut (Humphrey Bogart), um canadiano solitário, dado ao whisky e ao fumo, avesso a grandes falas, desiludido da vida e sem muitas razões para acreditar no que quer que seja. Mas a aldeia é atacada, o padre morre, e Charlie e Rose descobrem-se no interior do barco a descer um rio que ora corre vertiginoso, ora se adelgaça até parecer impossível a barcaça passar. Ela mantém de início o distanciamento de uma inglesa que não é dada a misturas, ele não esconde uma certa boçalidade e alguma rudeza de modos. Ela não perdoa aos nazis a morte do irmão e quer levar o barco até ao lago Victoria para mandar pelos ares um navio de guerra alemão com os explosivos que transportam, mas ele não está nem aí. Mas, lentamente, ela vai-se aproximando dele e ele vai-se aproximando do barco germânico, com algumas peripécias emocionais (e não só) pelo caminho. 
Um homem e uma mulher num barco a descer um rio em plena selva africana pode não ser um tema muito exaltante em termos dramáticos e espetaculares. Acontece que quem realiza o filme é John Huston, uma força da natureza, com argumento de James Agee, baseado no romance de C. S. Forester, e interpretações de Humphrey Bogart e Katharine Hepburn. A mistura não podia ser mais explosiva e o que ganha é o filme que se tornou rapidamente num memorável marco na história do cinema. Humphrey Bogart ganhou o Oscar de Melhor Actor, e a obra teve ainda nomeações para Melhor Actriz (Katharine Hepburn), Melhor Realizador (John Huston), e Melhor Argumento (James Agee e John Huston). Humphrey Bogart, Katharine Hepburn e John Huston foram ainda nomeados e premiados em diversas outras atribuições de galardões.

Uma das grandes virtudes do filme reside ainda no facto de ter sido rodado em cenários naturais em África. Nem poderia ter sido de outra maneira com John Huston a dirigir as operações. Ele adorava a aventura, paisagens exóticas, gentes diferentes, caçar grandes presas. Foi durante as filmagens de “A Rainha Africana” que ocorreram os episódios de “fugas” de John Huston para ir atrás de elefantes que, ao que consta, nunca conseguiu abater e do que mais tarde se arrependeu publicamente. Foi com base num romance de Peter Viertel, que colaborou no argumento de “A Rainha Africana”, ainda que não apareça mencionado no genérico, que Clint Eastwood rodou, em 1990, “Caçador Branco, Coração Negro” (White Hunter Black Heart) que, de certa forma, aborda esta aventura africana de Huston, sem o referir directamente.
De resto, esta rodagem esteve rodeada de episódios dramáticos. Filmado em grande parte no antigo Congo Belga (hoje República Democrática do Congo), e no lago Alberta (no Uganda), “A Rainha Africana” foi fértil em ameaças, desde o calor obsessivo às pragas de insectos, às visitas de animais ferozes, onde os crocodilos desempenharam papel relevante, até às doenças mais variadas (como a disenteria) que atingiram todos quanto provaram águas do rio, com excepção, ao que dizem, de John Huston e Humphrey Bogart que, à água preferiam o whiskey. Tudo isto aparece contado num livro de memórias de Katharine Hepburn,The Making of the African Queen: Or How I Went to Africa With Bogart, Bacall and Huston and Almost Lost My Mind”, ou na biografia de John Huston, “An Open Book”.
Mas se as peripécias foram muitas ao longo da rodagem, o mais interessante no filme que dela resultou foi o jogo de personalidades que se estabelece no interior desse huis-clos de um barco isolado na floresta selvagem. A forma como duas personalidades extremamente diferentes acabam por se unir, adaptando-se uma à outra através dessa viagem que tem nas margens de um rio o seu cenário natural, é magnifica. Mas essa viagem acompanha a de um outro rio, este interior, que vai mudando lentamente o comportamento de dois desconhecidos que vagarosamente se vão saboreando um ao outro. Dois actores admiráveis, duas subtilezas invulgares na composição de figuras que ficam para sempre marcadas nas memórias de quem com elas conviveu durante as duas horas de projecção. Bogart não anda muito distante do seu anti-herói, de início longe das grandes causas, por desânimo e descrença, que acaba por aderir a uma delas, normalmente por força de uma mulher (foi assim de “Casablanca” a “Ter ou Não Ter”, passando por tantas outras personagens, como o Philip Marlowe de “À Beira do Abismo”).
De resto, o filme é magnificamente dirigido por John Huston e, conta quem parece saber dos factos, esta rodagem em África terá sido muito benéfica para quem nela participou pois afastou alguns elementos tidos como “avermelhados” das malhas da Comissão das Actividades Anti-americanas.


A RAÍNHA AFRICANA
Título original: The African Queen
Realização: John Huston (EUA, Inglaterra, 1951); Argumento: James Agee, John Huston, John Collier, Peter Viertel, (estes dois últimos não creditados), segundo romance de C.S. Forester ("The African Queen"); Produção: Sam Spiegel, John Woolf; Música: Allan; Fotografia (cor): Jack Cardiff; Montagem: Ralph Kemplen; Direcção artística: Wilfred Shingleton; Guarda-roupa: Connie De Pinna, Doris Langley Moore, Vi Murray; Maquilhagem: Eileen Bates, George Frost; Direcção de Produção: Leigh Aman, T.S. Lyndon-Haynes; Assistentes de realização: Guy Hamilton, Bill Herlihy, Bert Pearl; Departamento de arte: John Hoesli, Harry Arbour, Ron Benton, Don Picton;  Som: John W. Mitchell, Eric Wood, Kevin McClory; Efeitos especiais: Cliff Richardson; Companhias de produção: Romulus Films, Horizon Pictures; Intérpretes: Humphrey Bogart (Charlie Allnut), Katharine Hepburn (Rose Sayer), Robert Morley (Rev. Samuel Sayer), Peter Bull (capitão do Louisa), Theodore Bikel (Oficial), Walter Gotell (Oficial), Peter Swanwick (Oficial do Shona), Richard Marner (Oficial do Shona), Gerald Onn, John von Kotze, etc.  Duração: 105 minutos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 26 de Janeiro de 1953

HUMPHREY BOGART 
(1899 – 1957)
Humphrey DeForest Bogart, também conhecido por Bogie ou Bogey,  nasceu em Nova Iorque, EUA, a 25 de Dezembro de 1899 e faleceu em Hollywood, Califórnia, EUA, a 14 de Janeiro de 1957, vítima de cancro. O American Film Institute elegeu-o como a maior estrela masculina do cinema norteamericano de todos os tempos. Ganhou um Oscar da Academia, com “A Rainha Africana”, em 1951.
Era o filho mais velho de Belmont DeForest Bogart e Maud Humphrey, ele médico cirurgião e ela artista gráfica. A sua juventude decorreu calmamente no confortável do bairro de Upper West Side, em Nova York, e estudou numa escola particular prestigiada, a Trinity School, e posteriormente na Escola preparatória Phillips Academy, em Andover, Massachusetts. Estava destinado a estudar medicina na Universidade de Yale, mas foi expulso por comportamento rebelde, e resolveu ir conduzir camiões. Durante a I Guerra Mundial, alistou-se na Marinha e, em 1918, o navio onde se encontrava foi atacado por submarinos e um fragmento de madeira rasgou-lhe a boca, afectando para sempre sua maneira de falar. Um ferimento nunca é abençoado, mas neste caso ajudou muito na criação da sua mística.
Em 1921 começava a sua carreira de actor nos palcos, em Brooklyn. Entre 1922 e 1925, apareceu em 21 produções da Broadway. Na época, Bogart conheceu Helen Menken, com quem se casou, para se separar um ano depois e voltar a casar, em 1928, com a actriz Mary Philips. Em 1934, Bogart interpretou a peça "Invitation to a Murder" e o produtor Arthur Hopkins gostou de o ver e convida-o para fazer parte do elenco de “The Petrified Forest”, representando o papel de Duke Mantee, um sinistro e perigoso fugitivo da cadeia. A peça contou 197 apresentações em Nova Iorque. Pouco depois, a Warner Bros comprou os direitos da peça para adaptá-la ao cinema, e assinou contrato com o protagonista no teatro, Leslie Howard, que insistiu em manter Bogart como companheiro de elenco no cinema. “A Floresta Petrificada”, estreado em 1936, contava ainda com a participação de Bette Davis, e foi um sucesso que catapultou Bogart inicialmente para uma carreira de vilão (excelente exemplo: “Angels with Dirty Faces”, de 1938) e, depois de “Relíquia Macabra” (1941), uma realização do seu amigo de sempre John Huston, passando-se para o outro lado da lei, nomeadamente como detective privado.
Em 1938, Bogart casa-se pela terceira vez, agora com a actriz Mayo Methot, casamento que acabou rapidamente. Aquando da rodagem de “Casablanca” (1943), Mayo acusou-o de ter um caso com Ingrid Bergman, e Bogart desligou-se, só voltando a casar, em 1945, com o grande amor da sua vida, Lauren Bacall. Estranhamente, Ingrid Bergman confessou anos depois que quase não se falaram fora do estúdio e disse mesmo mais. "Eu beijei-o, mas nunca o conheci". "Casablanca" tornou-se rapidamente numa das obras míticas da sétima arte e o actor passaria para sempre a estar colado a uma frase que nunca disse: “Play it again, Sam!”.
Entre 1943 e 1955, Bogart foi acumulando criações de personagens inesquecíveis (“To Have and Have Not”,1944, “The Big Sleep”, 1946, “Dark Passage”, 1947, “Key Largo”, 1948, “The Treasure of the Sierra Madre”, 1948, ou “In a Lonely Place”, 1950… ). Em 1949, fundou sua própria produtora, a Santana Productions. Em 1951, Bogart entra em “A Rainha Africana”, de novo sob as ordens de John Huston, e ao lado de Katharine Hepburn. Foi o seu primeiro filme a cores e com o seu trabalho como Charlie Alnutt conquistou finalmente o Oscar de melhor actor. Em 1954, rodou “The Caine Mutiny” (Os Revoltados do Caine), de Edward Dmytryk, segundo romance homónimo de Herman Wouk, que ganhara o Prémio Pulitzer em 1951, no papel do esquizofrénico Capitão Queeg. No mesmo ano, apareceu ainda em “Sabrina”, de Billy Wilder, e “The Barefoot Contessa” (A Condessa Descalça), de Joseph L. Mankiewicz. O seu derradeiro título foi “The Harder They Fall” (A Queda de um Corpo), de Mark Robson, no papel de Eddie Willis, um jornalista desportivo corrupto.
Morreu de cancro, devido talvez aos seus excessos de tabaco e álcool, no dia 14 de Janeiro de 1957. As suas cinzas encontram-se depositadas no Forest Lawn Memorial Park, Glendale, Los Angeles, EUA.

Filmografia:

1930: Broadway's Like That (curta-metragem); A Devil with Women, de Irving Cummings; 1931: Body And Soul (De Corpo e Alma), de Alfred Santell; Women of All Nations (Mulheres de Todas as Nações), de Irving Cummings; 1936: The Petrified Forest (A Floresta Petrificada), de Archie Mayo; Bullets or Ballots (Guerra ao Crime), de William Keighley; 1937: Marked Woman (A Mulher Marcada), de Llyod Bacon; Kid Galahad (O Mais Forte), de Michael Curtiz; San Quentin (Algemas Quebradas), de Lloyd Bacon; Dead End (As Ruas de Nova Iorque), de William Wyler; 1938: Angels With Dirty Faces (Anjos de Cara Lavada), de Michael Curtiz; 1939: King of The Underworld (Contra a Lei), de Lewis Seiler; The Oklahoma Kid (A Lei da Força), de Lloyd Bacon; Dark Victory (Vitória Amarga), de Edmund Goulding; The Roaring Twenties (Heróis Esquecidos), de Raoul Walsh; Invisible Stripes (Homens Marcados), de Lloyd Bacon; 1940: Virginia City (Duas Causas), de Michael Curtiz; It All Came True (Um Sonho para Dois), de Lewis Seiler; Brother Orchid (Orquidea Brava), de Lloyd Bacon; They Drive by Night (Vidas Nocturnas), de Nicholas Ray; 1941: High Sierra (O Último Refúgio), de Raoul Walsh; The Maltese Falcon (Relíquia Macabra), de John Huston; 1942: Across the Pacific (Garras Amarelas), de John Huston; 1943: Casablanca (Casablanca), de Michael Curtiz; Sahara (Sahara), de Zoltan Korda; 1944: Passage To Marseille (Passagem para Marselha), de Michael Curtiz; 1945: To Have and Have Not (Ter ou Não Ter), de Howard Hawks; Conflict (Conflitos de Alma), de Curtis Bernhardt; 1946: The Big Sleep (À Beira do Abismo), de Howard Hawks; 1947: Dead Reckoning (Maldita Mulher), de John Cromwell; Dark Passage (O Prisioneiro do Passado), de Dermer Daves; 1948: The Treasure of The Sierra Madre (O Tesouro de Sierra Madre), de John Huston; Key Largo (Paixões em Fúria), de John Huston; 1949: Knock on Any Door (O Crime não Compensa), de Nicholas Ray; 1950: In a Lonely Place (Matar ou Não Matar), de Nicholas Ray; The Enforcer (Sem Consciência), de Bretaigne Windust; Sirocco (Vento do Deserto), de Curtis Bernhardt; 1951: The African Queen (A Rainha Africana), de John Huston; 1952: Deadline Usa (A Última Ameaça), de Richard Brooks; 1953: Battle Circus (O Circo Infernal), de Richard Brooks; 1954: Beat the Devil (O Tesouro de África), de John Huston; 1954: The Caine Mutiny (Os Revoltados do Caine), de Edward Dmytryk; 1954: Sabrina (Sabrina), de Billy Wilder; 1954: The Barefoot Contessa (A Condessa Descalça), de Joseph L. Mankiewicz; 1955: We're no Angels (Veneno de Cobra), de Michael Curtiz; 1955: The Left Hand of God (A Mão Esquerda de Deus), de Edward Dmytryk; 1955: The Desperate Hours (Horas de Desespero), de William Wyler; 1956: The Harder They Fall (A Queda de um Corpo), de Mark Robson.

O VAGABUNDO DE MONTPARNASSE


O VAGABUNDO DE MONTPARNASSE (1958)

Amedeo Clemente Modigliani (Livorno, 12 de julho de 1884 — Paris, 24 de janeiro de 1920), italiano por nascimento, de origem judaica, foi um dos mais impressionantes talentos artísticos do início do século XX, uma época muito dada a vanguardas e onde abundaram os escritores, poetas, pintores, músicos, cineastas e todo o género de criadores que transformaram este período num dos mais fecundos da história do mundo. Este domínio obviamente romântico, fértil em suicídios e mortes muito jovens, com artistas “malditos” entregues ao álcool e ao absinto, às drogas  e à boémia, aos grandes amores, correspondidos ou não, mas sempre embriagantes, ao corte radical com os valores da burguesia instalada, aos grandes gestos de ruptura com o capital e o poder instituído, este foi o universo de modernistas e futuristas, surrealistas e expressionistas, cubistas e fauvistas, de construtivistas e revolucionários… todos em busca de utopias e sonhos, enquanto viviam em espeluncas de bairros populares de grandes metrópoles, ou se exilavam em paraísos exóticos.
Modigliani foi um solitário em Paris, para onde se mudou em 1906, depois de estudas pintura em Roma, Veneza e Florença. Doente e enfraquecido desde miúdo, enfrentou pleurisia, tifo e tuberculose, nunca recuperando totalmente dessas maleitas, nem de uma certa dependência materna, que o acompanhou ao longo da vida. O desregulamento da sua existência não o impediu de criar uma fabulosa galeria de obras, com predominância de retratos e nus femininos, retratos de amigos e uma ou outra paisagem, que na época não só não foram devidamente valorizadas pelo público em geral como, num caso ou noutro, foram perseguidas pelas autoridades. Basta relembrar a abertura da sua primeira exposição individual, em 1917, na Gallerie Berthe Weill, que seria encerrada no dia da inauguração por causa de um nu exposto na vitrine.


Conheceu e lidou com muitos artistas do seu tempo que se reuniam em Paris, mas contou com raros amigos. Um deles foi o poeta polaco Leopold Zborowski, que não se cansava de o incentivar. Apaixonado pela mulher, teve nalgumas delas apoio precioso. Caso da escritora inglesa e crítica de arte Beatrice Hastings, da galerista Anna Zborowsky, mas sobretudo da mulher que ele mais amou e que o acompanhou até à morte, a igualmente pintora Jeanne Hébuterne, oriunda de uma família convencional e abastada, que trocou tudo para acompanhar Modigliani, e que se haveria de suicidar, lançando-se do quinto andar de um edifício, grávida de nove meses, no dia a seguir à morte do seu companheiro.
Modigliani morre durante a noite de 24 de Janeiro de 1920, aos 35 anos, vítima de tuberculose, sendo sepultado no Cemitério do Père-Lachaise, em Paris. Pouco depois de ter desaparecido fisicamente da face da terra, os seus trabalhos adquiriram um valor incalculável, sendo presentemente das obras mais valiosas a transacionar em leilões de arte. Parece que um, ou vários, comerciantes de arte terão lucrado largamente com o funesto desenlace do artista.
Foram aspectos da vida deste pintor que deram origem ao filme “O Vagabundo de Montparnasse” (no original “Les Amants de Montparnasse” ou “Montparnasse 19”), que Jacques Becker dirigiu. Mas o projecto inicial não era seu, mas de Max Ophüls, que antes de iniciar a rodagem faleceu, e que iria contar com o casal Yves Montand e Simone Signoret, nos papéis de Modigliani e Jeanne Hébuterne. Becker surgiu então como alternativa, mas o argumento inicial de Henri Jeanson foi muito alterado, acabando mesmo por não surgir no genérico (aparece somente Jacques Becker, segundo romance de Michel-Georges Michel, "Les Montparnos"), e Gerard Philipe e Anouk Aimée foram os actores finalmente escolhidos. De Ophüls temos uma dedicatória inicial.
Jacques Becker (1906 – 1960) é um dos mais interessantes cineastas franceses anteriores à eclosão da Nouvelle Vague. Desde inícios da década de 40, assinou obras que figuram por direito próprio entre as mais importantes deste período, como “Goupi mains rouges”(1943), “Noivado Sangrento” (1945), “O Tonio e a Toninhas” (1947), “Eduardo e Carolina” (1951), “Aquela Loira” (1952), “O Último Golpe” (1954), este “O Vagabundo de Montparnasse” (1958) e “O Buraco” (1960). “Aquela Loira” “O Último Golpe” e “O Buraco” são unanimemente consideradas obras-primas. “O Vagabundo de Montparnasse”, talvez por não ser um projecto seu de início, não será dos seus títulos mais conseguidos, ainda que ofereça bastantes motivos para ser admirado. O seu estilo está bem patente,  a forma de tratar a mulher igualmente, a direcção de actores é bastante boa, com destaque para Gérard Philipe, um dos mais sensíveis e admiráveis actores desta altura, infelizmente hoje em dia pouco conhecido, porque raramente são vistas obras por si interpretadas. Mas não só Gérard Philipe merece destacado relevo, Anouk Aimée, como Jeanne Hébuterne,  Lilli Palmer, no papel de Beatrice Hastings e Lino Ventura, compondo a figura do manipulador Morel, são outras tantas composições muito interessantes. 
Onde o filme se nos afigura mais discutível é no retrato algo convencional do artista boémio, viciado em álcool e bebidas, apaixonado pelas mulheres, que se isola de tudo e todos para preservar a pureza da sua arte, que não aceita compromissos, que invectiva milionários e comerciantes e que, no final, acaba vítima de um quase suicídio por não se integrar de forma nenhuma na sociedade do seu tempo. Acontece que este retrato é o mais convencional que se possa imaginar, por muito real que tenha sido por essa altura a sorte de muitos artistas com idêntica predestinação. Mas Becker surge-nos muito previsível, de um melodramatismo por vezes exagerado, quando se lhe exigia um outro rigor e uma maior distanciação. Há momentos de um maniqueísmo evidente (a visita de Modigliani a um casal de milionários americanos é um deles), se bem que a descrição da época, os ambientes soturnos e a paixão que se sente entre Modi e Jeanne sejam aspectos a sublinhar pela positiva. Mas parece-nos francamente que a composição de Gérard Philipe merece bem uma revisitação, ou uma descoberta.  



O VAGABUNDO DE MONTPARNASSE
Título original: Les amants de Montparnasse ou Montparnasse 19
Realização: Jacques Becker (França, Itália, 1958); Argumento: Jacques Becker, segundo romance de Michel-Georges Michel ("Les Montparnos"); Produção: Sandro Pallavicini, Henry Deutschmeister; Música: Paul Misraki; Fotografia (p/b): Christian Matras; Montagem: Marguerite Renoir; Design de produção: Jean d'Eaubonne; Guarda-roupa: Georges Annenkov, Jacques Heim; Maquilhagem: Yvonne Fortuna, Denise Lemoigne; Direcção de Produção: Ralph Baum, André Hoss; Assistentes de realização: Jean Becker; Serge Witta; Departamento de arte: Robert Christidès; Som: Pierre-Louis Calvet; Companhias de produção: Franco London Films, Astra Cinematografica, Sandro Pallavicini; Intérpretes: Gérard Philipe (Amedeo Modigliani), Lilli Palmer (Beatrice Hastings), Lea Padovani (Rosalie), Gérard Séty (Léopold Zborowsky), Lino Ventura (Morel), Anouk Aimée (Jeanne Hébuterne), Lila Kedrova (Anna Zborowsky), Arlette Poirier (Lulu), Pâquerette (Madame Salomon), Marianne  (Berthe Weil), Judith Magre, Denise Vernac, Robert Ripa, Jean Lanier, Carole Sands, Jany Clair, Antoine Tudal, Bruno Balp, Jacques Ferrière, Monique Ardoin, Francis Aubert, Stéphane Audran (uma rapariga no terraço), René Berthier, Yori Bertin, Pierre Durou, Frank Edwards, Émile  Genevois, Harry-Max, François Joux, Robert Lepers, Julien Maffre, Jacques Marin, Daniel Mendaille, Paul Mercey, Germaine Michel, François Perrot, Pierre Richard (um estudante de pintura), Véronique Silver, etc. Duração: 108 minutos; Distribuição em Portugal: ZON Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 23 de Janeiro de 1959.

GÉRARD PHILIPE 
(1922 – 1959)
Gérard Philipe nasceu em Cannes, a 4 de Dezembro de 1922, e viria a falecer em Paris, a 25 de Novembro de 1959. Tinha 37 anos e uma carreira absolutamente brilhante, tanto no teatro como no cinema franceses. Foi seguramente dos nomes mais prestigiados do universo do espectáculo europeu durante as décadas de 40 e 50, deixando o seu nome ligado a obras que para sempre celebrarão o seu incomensurável talento e a beleza e elegância do seu perfil.  
Estudou no Conservatório de Arte Dramática, em Paris. Aos 19 anos, estreou-se como ator de teatro em Nice e, no ano seguinte, a sua interpretação na peça “Calígula”, de Albert Camus, leva-o a ser convidado a integrar o elenco do Théâtre National Populaire em Paris e Avinhão, cujo festival, fundado em 1947 por Jean Vilar, é o mais famoso e antigo do país. Sob a direcção de Vilar, teve atuações inesquecíveis interpretando, entre outros, "O Cid", de Corneille, "O Príncipe de Hamburgo", de Kleist, "Lorenzaccio", de Musset, "Ricardo II", de Shakespeare e "Ruy Blas", de Victor Hugo.
No cinema, Gérard Philipe estreia-se em 1943, em “Les Petites du Quai aux Fleurs”, de Marc Allégret. Continuou a carreira em pequenos papéis, até atingir o estrelato com “Le Diable au corps” (1947), de Claude Autant-Lara. Prinicipais filmes: 1947: Le Diable au corps, de Claude Autant-Lara; La Chartreuse de Parme, de Christian-Jaque; 1949: La Beauté du diable, de René Clair; 1950: Juliette ou la Clé des songes, de Marcel Carné; La Ronde, de Max Ophüls; 1951: Fanfan la Tulipe, de Christian-Jaque; 1952: Les Belles de nuit, de René Clair; 1953: Les Orgueilleux, de Yves Allégret; Monsieur Ripois, de René Clément; Si Versailles m'était conté..., de Sacha Guitry; 1954: Le Rouge et le Noir, de Claude Autant-Lara; 1955: Les Grandes Manœuvres, de René Clair; Si Paris nous était conté de Sacha Guitry; 1956: Les Aventures de Till l’Espiègle, de Gérard Philipe et Joris Ivens; 1957: Montparnasse 19 de Jacques Becker; Pot-Bouille, de Julien Duvivier; 1958: Le Joueur, de Claude Autant-Lara; 1959: Les Liaisons dangereuses, 1960 de Roger Vadim; 1959: La fièvre monte à El Pao, de Luis Buñuel.
Senhor de uma magnífica voz, utilizou-a para registrar textos de Marx, Villon, Rimbaud ("Le Bateau ivre"), Éluard ("Liberté") e "O Pequeno Príncipe", de Saint-Exupéry. Em 1951, Gérard Philipe casou-se com a actriz Nicole Fourcade (1917–1990), com quem teve dois filhos.

Reconhecido pelo seu talento, desapareceu, vítima de cancro no fígado, quando atravessava o melhor período da sua carreira. Os seus restos mortais repousam no cemitério de Ramatuelle, junto à costa do Mar Mediterrâneo.