sexta-feira, 17 de março de 2017

JUBAL


JUBAL (1956)

Na história do western os anos 50 foram particularmente interessantes, por várias razões. Antes da indicação “western” ser corrente, como designação de certo peso cultural, existiam os “filmes de cowboys”, muito populares durante a época do mudo e até meados da década de 30. Até aqui tudo era muito claro e maniqueísta, havia os bons e os maus, normalmente os brancos e os pretos na cor dos fatos e dos cavalos, mas também por vezes na cor da pele. Mas, quanto à diferenciação rácica, havia sobretudo distinção entre os brancos e os vermelhos (sem sequer haver associação política à cor, mas sim aos peles-vermelhas).
Depois o western começou a impor-se com outra importância artística e cultural, entrou-se na época dos grandes clássicos, como “Stagecoach”, de John Ford, e tantos outros. A introdução do sonoro permitiu uma maior complexidade das intrigas e começaram-se a discutir temas importantes, de um ponto de vista histórico e social. Mas em finais da década de 40 e durante todos os anos 50 o western ganhou uma nova dimensão, por vários motivos. O incremento das ideias de Freud e da psicanálise, que entraram abertamente no território norte-americano, a emancipação da mulher, depois do esforço imposto pela II Guerra Mundial, e a guerra fria, o macartismo e todas as consequências decorrentes destes fenómenos contaminaram o western com temas, ideias, figuras, situações que não eram muito populares até aí.
Para caracterizar estas posições assumidas pelos autores de westerns na década de 50 podemos socorrermo-nos das palavras de Barthémely Amengual (um dos grandes especialistas do género, in “lmage et Son”, n. 97, 1956), escritas por essa altura: “Neo-western, sur-western, anti-westem, western romanesco... a crítica não sabe como baptizar (ou definir) o western contemporâneo (ia a dizer adulto, o que seria injurioso para os antigos êxitos ...)”. Ou ainda de André Bazin (in “Cahiers du Cinéma”, n. 054, 1955): “Chamarei convencionalmente sur-western ao conjunto das formas adaptados pelo género, no pós-guerra. Mas não procurarei dissimular que a expressão vai soçobrar pela necessidade de exposição de fenómenos nem sempre comparáveis. Ela pode, no entanto, justificar-se negativamente por oposição ao classicismo dos anos 40 e, sobretudo, à tradição de que é a resultante. Digamos que o sur-western é um western que teria vergonha de ser ele mesmo e procurasse justificar a sua existência por um interesse suplementar: de ordem estética, sociológica, moral, psicológica, política, erótica..., logo, por qualquer valor extrínseco ao género e que se supõe vir enriquecê-lo.”
Estas palavras dão bem a medida do que foi o western do pós-guerra. O classicismo dos anos anteriores cede o lugar à heterodoxia, conjugando elementos de índole diversa com a tradição e a mitologia próprias do género. O que não pode deixar de ser significativo de uma nova mentalidade. O western deixou de ser considerado um terreno puro, “intoxicou-se” (no dizer de Nuno Portas, num texto relativo a “Johnny Guitar”). Recusada a pureza original, viu-se contaminado por intenções várias. “O Comboio Apitou Três Vezes” (1953), de Fred Zinnemann, é um bom exemplo deste período fértil em obras de corajosa denúncia racial, política (reacção ao macarthismo, nomeadamente), social e moral. No entanto, uma das obras mais frisante desta época de transição é indubitavelmente “Shane” (1953), de George Sleven. As interferências externas prolongam-se, entrando por campos até aí pouco explorados. Surgem os primeiros casos de erotismo na história do filme do Oeste em certa medida como consequência da inflação da “pin up” durante a guerra. Uma progressão irreversível que vai do próprio “A Terra dos Homens Perdidos”, de Howard Hughes e Hawks ao “Rio sem Regresso” (1954), de Otto Preminger, passando pelo paroxismo de um “Duelo ao Sol”, de Vídor,
Convém, no entanto, fazer notar dentro desta mesma tendência moderna do western duas vias possíveis de desenvolvimento: uma que vai ao encontro de toda a mitologia do género e que a enriquece de dentro (com cineastas como Howard Hawks, Nicholas Ray, Anthonny Mann, Raoul Walsh ... ) e uma outra, onde essa intoxicação se processa do exterior, ou seja, como imposição prévia (neste caso estão autores como Fred Zinnemann, John Sturges, Robert Aldrich, Richard Brooks, Delmer Daves, entre outros). Enquanto um western de Anthony Mann não seria pensável senão sob a forma western, o mesmo não sucederia em relação a “O Comboio Apitou Três Vezes”, “Lança Quebrada” ou “Vera Cruz”. Os problemas centrais deste neo-western ultrapassam o género e situam-se a um nível de debate de ideias e conceitos que se poderiam igualmente equacionar num policial ou “filme negro”, numa comédia ou num austero filme de tese.
De qualquer forma, e quer a aludida intoxicação se processe de dentro para fora ou inversamente, o que está em causa é a consciencialização dos cineastas norte-americanos que, passada que foi (com mágoa) a época liberal do “New-Deal”, se encontraram a braços com uma América inesperadamente em crise, crise que não é só económica, mas igualmente social, moral, politica, psicológica, afectada profundamente pela desilusão do pós-guerra e pela realidade da guerra fria. Afinal, uma nova crise em que valores antigos deixam de se ajustar a realidades presentes. Desse desajuste nasce esse novo western, moderno em relação aos valores clássicos, que pode ser testemunhado, entre muitos outros, em títulos como “Johnny Guitar” (Ray, 1953), “Esporas de Aço” (Mann, 1952), “O Homem Que Veio de Longe” (Mann, 1954), “Céu Aberto” (Hawks, 1951), “A Lança Quebrada” (Dmytryck, 1954), “Homem sem Rumo” (Vidor, 1954), “A Última Caçada” (Brooks, 1955) ou “Jubal” ou “O Comboio das 3 e 10” (Daves, 1956 e 1957). 

Entramos, portanto, no caso muito especifico de “Jubal” que se apoia, nada mais nada menos, do que numa peça teatral de Shakespeare, ou mesmo nas óperas de Gioachino Rossini ou Giuseppe Verdi, para não falar de tantas outras formas de arte que se inspiraram na tragédia do famoso general árabe de Veneza. A história é sabida de todos, tão popular é: Othello, casado com Desdémona, tem em Cassio, um fiel ajudante, e em Iago, um rival intriguista e desleal. Vingando a promoção de Cassio, que considera injusta, inventa uma traição deste, acusando-o de amores adúlteros com Desdémona, o que irá provocar uma terrível tragédia. Um tema eterno que coloca em causa temas como o ciúme, o amor, a traição, a vingança e, no caso de Shakespeare, o racismo.
O filme de Delmar Daves anula o caso do racismo, pois todos os protagonistas são brancos, mas mantem tudo o resto em equação, partindo de um romance de Paul Wellman, o próprio Daves e Russell S. Hughes adaptaram. Em lugar do tema racismo, Daves acerca-se de um conflito que já fizera parte central de “Shane”: a luta entre os grandes barões do gado e os pequenos proprietários ou criadores de porcos ou ovelhas. Tudo se passa em Jackson Hole, em Wyoming, onde Jubal Troop (Glenn Ford) aparece, vindo não se sabe de onde, mas cai nas graças de Shep Horgan (Ernest Borgnine), um fazendeiro bem-humorado e generoso, que lhe oferece trabalho e hospitalidade. Quem não se mostra tão afectuoso é Pinky (Rod Steiger), que gostaa de ser o preferido de Shep e vê a sua posição vacilar perante a chegada de Jubal. Tanto mais que Mae ((Valerie French)), a jovem mulher de Shep, parece igualmente preferir Jubal a Pinki, na sua necessidade evidente de afecto e algo mais. O resto é “Othello” adaptado ás pradarias do Oeste, com inteligência, critério e um excelente esboço social e humano a suportar a intriga.


Delmer Daves (1904–1977) é um cineasta particularmente interessante, nem sempre devidamente avaliado. Repartiu grande parte das suas obras entre o western e o melodrama, e nos dois campos, assinou obras de referência. Depois de um início de carreira onde tocou um pouco em todas as teclas dos géneros (“Rumo a Tóquio”, 1943;  “Sonho em Hollywood”, 1944; “Uma Luz nas Trevas”, 1945; “A Casa Vermelha”, 1947; e esse magnifico “O Prisioneiro do Passado”, 1947, com Humphrey Bogart), Delmer Daves passou a dividir,quase exclusivamente, a sua filmografia por westerns líricos, vibrantes, sensuais e românticos (“A Flecha Quebrada”, 1950;  “A Última Caravana” e “Jubal”, 1956; “O Comboio das 3 e 10”, 1957; “Cowboy - Como Nasce Um Bravo” e “Os Homens das Terras Bravas”, 1958; ou “Raízes de Ouro”, 1959) e melodramas se exasperado sentimentalismo, mas sempre dirigidos com rigor e contensão, numa linha que se aproxima muito do mestre deste género, Douglas Sirk (“Carne da Minha Carne” e “Bonecas de Carne”, 1961; “Escândalo ao Sol”, 1959; “Viver é o que Importa”, 1962, “Febre de Viver”, 1964; ou “Escândalo em Villa Fiorita”, 1975).
Jubal é um filme que demonstra muitas das qualidades do cinema apaixonado e vigoroso de Delmer Daves, um homem que gosta de explorar os grandes espaços naturais, mas igualmente mestre no aproveitamento de interiores, onde se encerram muitos dos seus conflitos. Cenários de cores quentes, onde as paixões explodem ou se controlam e as emoções se atiçam são a base para excelentes actores se exercitarem, por vezes com métodos e formas de representar diversos, o que torna ainda mais aliciante o seu confronto.  Glenn Ford, Ernest Borgnine, Rod Steiger, Valerie French, Charles Bronson, Jack Elam, Felicia Farr, Noah Beery, Jr., ou Basil Ruysdael são magnificos nas suas composições, assim como são de ressalvar a bela fotografia de Charles Lawton Jr. e a partitura musical de David Raksin.


JUBAL
Título original: Jubal
Realização: Delmer Daves (EUA, 1956); Argumento: Russell S. Hughes, Delmer Daves, segundo romance de Paul Wellman; Produção: William Fadiman; Música: David Raksin; Fotografia (cor): Charles Lawton Jr.; Montagem: Al Clark; Direcção artística: Carl Anderson; Decoração: Louis Diage; Guarda-roupa: Jean Louis;  Maquilhagem: Clay Campbell, Helen Hunt; Assistentes de realização: Eddie Saeta; Som: John P. Livadary, Harry Smith; Companhias de produção: Columbia Pictures Corporation; Intérpretes: Glenn Ford (Jubal Troop), Ernest Borgnine (Shep Horgan), Rod Steiger ('Pinky' Pinkum), Valerie French (Mae Horgan), Felicia Farr (Naomi Hoktor), Basil Ruysdael (Shem Hoktor), Noah Beery Jr. (Sam - Horgan Rider), Charles Bronson (Reb Haislipp), John Dierkes (Carson), Jack Elam (McCoy), Robert Burton (Dr. Grant), John L. Cason, Michael Daves, Juney Ellis, Don C. Harvey, Robert 'Buzz' Henry, Larry Hudson, Robert Knapp, Ann Kunde, William Rhinehart, etc. Duração: 100 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: Cinema Império, 23 de Junho de 1957.


GLENN FORD (1916-2006)
Glenn Ford, de nome de baptismo Gwyllyn Samuel Newton Ford, nasceu a 1 de Maio de 1916, no Quebeque, Canadá, e faleceu a 30 de Agosto de 2006, com 90 anos, em Beverly Hills, Califórnia, EUA. Filho de um executivo ferroviário, com oito anos de idade muda-se para Santa Mónica, na Califórnia, e torna-se cidadão americano em 1939. Estudou na High School de Santa Mónica, e estreia-se como actor aos 19 anos. Integra várias companhias, até chegar à Broadway. Contratado pela 20th Century Fox, passa para a Columbia, onde roda cerca de 50 filmes em 18 anos, sobretudo western de pequeno orçamento e de realizadores medianos. Passa pelos US Marines Corps, durante a II Guerra Mundial e, de regresso, integra-se no elenco da Columbia, onde assegura um lugar destacado. A partir de “Gilda” a sua áurea aumenta e durante alguns anos tentam reeditar o êxito da dupla Hayworth-Ford, sem nunca atingir a intensidade do original. Mas interpretou muitos e bons papéis, dirigido por grandes cineastas, como Fritz Lang, Richard Brooks, Vincente Minnelli, e manteve uma clientela fiel, tanto no cinema, como posteriormente na televisão. Envelheceu mal, dado ao álcool e a irascibilidade. Ao receber um prémio, concedido por uma revista da especialidade, protagonizou um episódio infeliz: recusou-se sentar ao lado de um outro actor, negro. Casado com Eleanor Powell (1943-1959), Kathryn Hays (1966-1969), Cynthia Hayward (1974-1977) e Jeanne Baus (1993-1994). Teve ainda conhecidas ligações com Zsa Zsa Gabor, Hope Lange, Rita Hayworth, Connie Stevens, Joan Crawford, Dinah Shore, Brigitte Bardot, Debbie Reynolds, María Schell, Linda Christian, Judy Garland, entre outras, que não acabaram em casamento. Glenn Ford sofreu de problemas cardíacos durante a fase final da sua vida. Ganhou um Globo de Ouro, em 1962, pelo seu desempenho em “Pocketful of Miracles”. Tem uma estrela no “Passeio da Fama”, em 6933 Hollywood Blvd.

Filmografía (principais filmes): 1939: My Son Is Guilty (O Filho de um Gangster), de Charles Barton; 1940: The Lady in Question (Acusada, Levante-se!), de Charles Vidor; 1941: So Ends Our Night (Regresso a Berlim), de John Cromwell; 1941: Texas (Texas), de George Marshall; 1943: The Desperadoes (Bandidos), de Charles Vidor; 1943: A Stolen Life (Uma Vida Roubada), de Curtis Bernhardt; 1946: Gilda (Gilda), de Charles Vidor; 1948: The Loves of Carmen (Amores de Carmen), de Charles Vidor; 1948: The Man From Colorado (Pena de Talião), de Henry Levin; 1949: Lust for Gold (Oiro Maldito), de S. S. Simon; 1952: Affair in Trinidad (Calypso, a Feiticeira da Ilha), de Vincent Sherman; 1953: The Man from Alamo (Invasores), de Budd Boetticher; 1953: The Big Heat (Corrupção), de Fritz Lang; 1953: Appointment in Honduras (Encontro nas Honduras), de Jacques Tourneur; 1954: Human Desire (Desejo Humano), de Fritz Lang; 1955: The Americano (O Americano), de William Castle; 1955: The Violent Men (Homens Violentos), de Rudolph Maté; 1955: The Blackboard Jungle (Sementes de Violência), de Richard Brooks; 1955: Interrupted Melody (Melodia Interrompida), de Curtis Bernhardt; 1955: Trial (A Fúria dos Justos), de Mark Robson; 1956: Jubal (Jubal), de Delmer Daves; 1956: The Teahouse of the August Moon (A Casa de Chá do Luar de Agosto), de Delbert Mann; 1957: 3:10 to Yuma (O Comboio das 3 e 10), de Delmer Daves; 1958: Cowboy (Cowboy, Como Nasce um Bravo), de Delmer Daves; 1958: The Sheepman (O Irresistível Forasteiro), de George Marshall; 1960: Cimarrón (Cimarron), de Anthony Mann; 1961: Pocketful of Miracles (Milagre por um Dia), de Frank Capra; 1962: The Four Horsemen of the Apocalypse (Os Quatro Cavaleiros do Apocalipso), de Vincente Minnelli; 1962: Experiment in Terror (Uma Voz na Escuridão), de Blake Edwards; 1963: The Courtship of Eddie's Father (As Noivas do Papá), de Vincente Minnelli; 1964: Dear Heart (Uma Vida por Viver), de Delbert Mann; 1966: The Money Trap (A Tentação do Dinheiro), de Burt Kennedy; 1966: Paris Brûle-t-il? (Paris Já Está a Arder?), de René Clément; 1968: Day of the Evil Gun (A Pistola do Mal), de Jerry Thorpe; 1969: Heaven with a Gun (À Mão Armada), de Lee H. Katzin; 1976: Midway (Batalha de Midway), de Jack Smight; 1978: Superman (Super-Homem), de Richard Donner; 1991: Raw Nerve, de David A. Prior; 1991 (último trabalho): Final Verdict (TV).


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